segunda-feira, 10 de março de 2014

Desapegos Desastrosos


Esses dias, resolvi obedecer a um antigo psicanalista e cumprir a tal “Lei do Desapego”. Acho que só não fiz isso antes de raiva. Do psicanalista, claro, pois o cretino me cobrou uma fortuna por conselhos que qualquer um desses programinhas que passa de tarde nas TVs Records da vida, ou cantor sertanejo me diriam de graça. Ok, passando o momento de negação, vamos então aos “desapegos”.

Partindo do princípio que a necessidade do desapego advém de uma prática - provavelmente chupada do Feng Shui ou qualquer outra coisa que os orientais apregoam – que condiz que devemos reciclar nossas energias através da eliminação de objetos materiais que não usamos e estão estagnando um possível progresso em nossas vidas, achei válida a tentativa. Dizem os conhecedores, que ao acumularmos tantas coisas inúteis, ficamos amarrados energeticamente a elas, dependentes de sentimentos passados que não nos fazem mais bem. Ou seja, guardar aquele papel de bala que o fulaninho te deu, só porque “foi a primeira bala que fulaninho te deu”, além de denotar que você tem algum instinto de rato ou guaxinim, significa que você não quer largar a energia que te ligava ao fulaninho, sendo que nem ele ou a marca da bala existem mais em sua vida.

Eu realmente não tenho moral para falar dos ratos ou guaxinins, animais que naturalmente acumulam tudo quanto é porcaria em seus ninhos. Sou um “apegado” profissional. Guardo tantas tralhas em minha vida e aposentos que fariam um bazar turco passar vergonha. Todos registros materiais de minhas decepções amorosas e frustrações estão  por aí, espalhados por gavetas e caixas de fundo de armário. Sou uma tragédia pessoal numa montanha de quinquilharias.

Disposto a dar um fim nisso, liguei para a Leidydai. Leidydai é uma moça que trabalha como diarista e faxineira, e de vez em quando me salva da situação do meu apartamento, de tão sujo e desorganizado, se tornar um organismo vivo simbiótico e me devorar. Como acabou o carnaval, imaginei que a Leidydai – que segundo ela, recebeu esse nome da mãe em homenagem àquela princesa de Mônaco (!) – estivesse precisando de uma grana extra para pagar suas eternas dívidas em paetês e fantasias que ela contrai todo fevereiro. Ah sim, Leidydai é passista de pelo menos trinta Escolas de Samba que existem por aí, e diz que só fará faxinas até virar a próxima Globeleza ou rainha da bateria do Salgueiro ou da Mangueira - sei lá, uma dessas.

A missão da Leidydai dessa vez era mesmo digna de enredo de Escola de Samba: me ajudar a dar fim nas minhas quinquilharias passadas, dignas de centenas de histórias que não deveriam fazer mais sentido na minha vida.  E a cada gaveta aberta, a cada caixa revelada, a cada armário desbravado, lembranças voavam agitadas pelo meu apartamento como morcegos desnorteados. Mas na realidade, confrontar seu passado e estar disposto a jogá-lo fora, te dá uma sensação única de poder. Talvez a história não ganhe uma nova ordem ou um final melhor, mas certamente, você enfim sente-se livre. Livre de mágoas tolas e arrependimentos desnecessários. Livre de algo que já se foi. Livre até mesmo de um pedaço de você mesmo.

De bilhetes, cartas e fotos, até detalhes mais prosaicos de uma relação, como tickets de cinema e os absurdos papéis de bala, tudo estava lá, lembrando-me de pessoas, dias e horas com essas pessoas, alegrias e tristezas com essas pessoas. Anos e anos em vão, entupindo minhas gavetas. E eu, ironicamente, reclamava de espaço para guardar minhas cuecas e meias.

- O que o senhor vai fazer como esses aqui? – perguntou-me Leidydai, assim que encontrou um saco plástico cheio de ursos de pelúcia, após tossir poeira e ácaros. 

Ursinhos de pelúcia! Cacete, existem mulheres que presenteiam seus namorados com ursinhos de pelúcia! Ok, sem discussões de gênero aqui, mas não existe maneira mais bizarra de infantilizar o homem da relação do que dar-lhe um urso, coelho, tatu-bola, lagarto, ornitorrinco, e sei lá que outra espécie da fauna, de pelúcia. Quem sabe uma mamadeira e uma chupeta da próxima vez? Eu tive uma namorada que, se o IBAMA controlasse animais de brinquedo, ela estaria presa há séculos. Realmente, é impossível um relacionamento ir à diante, pressupondo que esses exigem maturidade, enquanto o casal ficar trocando criaturinhas fofas de pelúcia! Qual seria a ideia por trás disso? Arrastar a infância para dentro da alcova do casal? Não, não, perturbador.

- Leidydai, jogue esse zoológico de pelúcia fora – ordenei.

- Sr. Apêndice, posso ficar com eles e dar aos meus filhos? – questionou-me a faxineira.

- Você têm filhos, Leidydai?

- Ainda não, mas um dia eu vou ter. – respondeu-me Leidydai, convicta de uma lógica um tanto própria.

Dei de ombros e assenti que sim, desde que aqueles bichos ficassem longe de mim.

A sessão de cartas e bilhetes foi outra decadência existencial que sucumbiu sobre mim. É que eu sou de uma geração pré-Facebook, Whatsapp e sei lá mais quais apps que estão na moda. Eu era de uma época em que as pessoas utilizavam papel e caneta para registrar a escrita. Os namoros eram assim também, sentimentos verbais eram marcados com traços de esferográficas sobre calhamaços de celulose.

Quando eu era criança, ganhar um bilhetinho da colega de aula dizendo que “você era bonito" e que "ela gostava de você”, valia tanto quanto uma medalha de guerra. Ainda mais porque eu nunca ganhei um desses. Mas acho que por casos como esses, se perpetuou um ritual nos relacionamentos de enviar palavras escritas, pois talvez a validade material tivesse mil vezes mais poder que a validade sentimental, etérea e intangível. Você não pode segurar um “eu te amo”, mas pode ir ao bilhete de folha de caderno arrancada que diz o mesmo, quantas vezes você quiser.  O problema, que ao final inevitável das relações, fica toda uma Biblioteca de Alexandria perdida na sua vida, esperando um arqueólogo corajoso a desbravá-la. Chega a ser é cômico: quantas vezes você não abre “aquela” caixa, cheia de lembranças de um relacionamento passado, só porque tem medo do que possa sentir? Muitos até colocam um aviso de “não abra” sobre a caixa, evitando o confronto com aquela Pandora sentimental. Por isso, ponto para a teoria do desapego: jogue tudo fora, queime e não se incomode mais com o monstro de dentro do armário, ou de baixo da cama, ou sei lá mais onde você guarda essas relíquias do relacionamento morto.

Com as fotos o caminho foi quase o mesmo. Repito o discurso de matusalém, mas eu sou de uma época ancestral ao Instagram, de uma era em que as pessoas tiravam fotos, levavam seus rolinhos de 12 a 36 poses para revelar, e depois as resgatavam, impressas em papel filme. E como momentos cristalizados, congeladas em um tempo-espaço em que parecemos felizes para sempre, lá elas estavam, fotos e mais fotos de namoradas antigas que agora moravam escondidas em minhas gavetas. Em era do .jpg, as milhares de fotos que tiramos ficam vagando em redes sociais ou perdidas em alguma pasta do HD de um computador. O acesso não é mais o mesmo. As provocações do destino não são mais tão ferozes. E além do mais, o botão delete está ali, sempre de prontidão. E se ele ainda não for eficaz, nada como um bom vírus para destruir sua Placa Mãe e enviar seu PC para o lixo, junto com as memórias digitalizadas.

O engraçado é que eu pensei que rever as fotos antigas seria algo mais doloroso. Na verdade, ao me rever em minhas fotos do passado, acabei mudando minha ótica sobre quem eu era naquela época. Ao ver minha cara de moleque ridículo há mais de uma década, tive que assumir: “agora eu sei porque ela me chifrou”. Ter um olhar despido de paixão ou raiva me deu a lucidez de que essas antigas namoradas nunca foram tudo isso que eu imaginava até os dias de hoje – até mesmo porque muitas já estão gordas ou velhas. Ah, o tempo - ele pode ser bem reconfortante, ainda mais quando ele passa. De posse a inúmeras fotografias, a ordem foi apenas uma a Leidydai:

- Queime-as.

Leidydai sorriu para mim com uma cara de cumplicidade e disse:

- Ahhhh, eu sabia que o senhor ia na mesma Mãe-de-Santo que eu...

O desapego seguiu, num gosto acre-doce de despedidas. Foram alguns CDs, alguns livros, roupas, lembranças tolas e os mais variados eteceteras. No final da jornada, para minha surpresa, tanta tralha não se resumia em um mundo sentimental que eu achei que havia construído. Acho que é porque, no processo de confrontação com o passado, eu percebi o quanto tais energias eram realmente desnecessárias. Ficou claro, que as lembranças não digeridas pela alma ganham proporções maiores do que elas realmente são. Livrei-me mais do que quinquilharias – fui liberto de amarras existenciais insensatas e, até mesmo, ridículas. Eu não precisava de coragem para mexer naquelas velhas caixas e gavetas - precisava mesmo era de vergonha na cara.

Fiquei um tempo olhando para o novo nada que se apoderou das minhas gavetas e armários, pensando por um breve momento se minhas ex-namoradas tinham se livrado de tudo que dei a elas, mas fui – graças aos céus – interrompido de meu estado introspectivo por uma exclamação de Leidydai:

- Sr. Apêndice, encontrei uma caixa aqui com umas pedrinhas brilhantes!

Pedrinhas brilhantes? Será que Leidydai achou improváveis pedras preciosas de um parente pirata que eu nunca tive? Fui conferir, e então, meu coração encheu-se de nostalgia quase me levando as lágrimas: eram meus Geloucos da Coca-Cola! Deus do céu! Quantos litros de refrigerante eu tomei para completar a coleção? Não sei como não morri de tanto sódio e açúcar! Há anos estavam esquecidos no fundo de meu armário, e o pior, do limiar da minha memória. Fiquei num transe infantil, até ser novamente interrompido por Leidydai:

- Sr. Apêndice, e aí, jogo eles fora junto com o resto de coisas do desapego?

- Não, Leidydai, guarde meus Geloucos de volta!


Afinal, tudo tem um limite. Até os desapegos. 


segunda-feira, 4 de março de 2013

Tudo de novo


Acabou mais um ano. Começou outro. Tudo de novo. 



 - Ei, mas como assim? É março! Já faz dois meses que o ano começou?!!! Está atrasado – para variar – Sr. Apêndice!

Não. O ano DE VERDADE começa agora. É agora que as doces ilusões que nos foram concedidas enquanto estávamos exilados da rotina – mesmo dentro da rotina, diga-se de passagem – acabam. Falando em um lenga-lenga menos filosófico: acabaram as férias, foi-se o verão. Chegaram as cretinas águas de março (perdoe-me, Tom Jobim).

Repetindo: acabou. Vamos ao tudo de novo. Seja bem-vindo - com um sorriso amarelo e cheio de hipocrisia – março; apresente-nos seu amigo ano novo, já que seus irmãos janeiro e fevereiro falharam em tal introdução. Seja bem-vinda realidade – acordar cedo, trabalhar, estudar, fazer tudo em um processo mecânico e repetitivo até dezembro, o mês super-herói que vem para nos resgatar do cotidiano sufocante.
(Aliás, gostaria de manifestar aqui minha antipatia ao mês de março. Eu odeio março! Detesto março tanto quanto detesto domingos. E se pararmos para pensar, se um ano fosse uma semana, março seria o domingo.)

Mas acho que o “tudo de novo” que me angustia no momento não é a rotina artificial que tentamos sem sucesso evitar ou adiar - já que o mundo amanhece e anoitece desde os primórdios da existência. Minha estreiteza na realidade é uma alegoria para tudo que a vida – em especial, ao que tange os sentimentos – nos reserva. Querendo ou não, todo recomeço nos evoca novas esperanças.

Caso não tenham entendido, falo daqueles montes e montes de promessas e coisas que precisam acontecer no ano que começa para haver sentido em um novo começo. Amores.  Esperanças. Felicidades. Inícios. Fins. Sentimentos. Sentidos.  Senão, para que todo aquele porre de champagne na madrugada do dia 1º de janeiro? Mais uma ressaca gratuita? (E enfatizo mais uma vez: o reveillon deveria ser em março!)

Agora nada mais que rime com "fim" faz sentido. O mantra agora é “começo”, “início”, “recomeço”, “vida nova”, “volta às aulas”, “volta à rotina”. Ora, nem o mundo que ia acabar, – conforme nos encheram o saco durante 2012 inteiro – acabou. O tal e prometido fim do mundo não veio, o que não é algo que se constitui propriamente em um problema, pois daqui a pouco a Discovery Chanel já vai arranjar uma maneira de acabar com ele de novo (terremotos, invasões alienígenas, profecias Maias, apocalipse zumbi, Gustavo Lima e você – qual vai ser a próxima bomba fica a critério do próximo Globo Repórter).  Então apocalípticos de plantão, relaxem. Daqui a pouco alguém descobre mais uma profecia escondida do Nostradamus e o mundo já acaba de novo.

O carnaval, nossos festejos da carne, época de expurgar nossos demônios anuais com porres e putaria mal chegou e já se foi. Aqueles dias infernais (nos dois sentidos!) de batucada, axé, marchinhas e samba nos ludibriaram como sempre, nos fazendo quase acreditar que não haveria realidade após a quarta-feira de cinzas. Agora só nos resta esperar o próximo feriado para nos recuperarmos ainda do estrago que o carnaval nos fez (nossos fígados, neurônios, corações e finanças que o digam).

De qualquer forma, o binômio começo/fim nos visita mais uma vez, com o intuito de nos assombrar e esperançar que no final do túnel há sempre a esperançosa luz para nos acenar que “calma, tudo há de dar certo ainda, mesmo que nunca tenha dado”. É como se fosse um tapinha nas costas do destino, nos dizendo “vamos lá, você ainda tem mais uma chance”. E assim rolamos os dados nas inevitabilidades do caos, nos agarramos nas crinas da sina em mais uma galopada da vida. Com o cronômetro zerado, percebemos que mais um ano vindouro - na realidade,  apenas mais um dia que vem – é mais uma aposta desesperada na loteria da felicidade eterna. Nesse ponto, a esperança, mais recauchutada que pneu de beira de estrada, se torna uma instituição, uma crença necessária para que o mundo não vire o apocalipse ou fim do mundo que mencionávamos antes.

Precisamos acreditar. Dependemos disso. Se não são começos, pelo amor de Deus, que sejam recomeços! O fim, de tudo - mundo, corações e ilusões - vai ser sempre aquela sombra a nos perseguir. Faz parte da nossa condição cíclica, da vida dando lugar a morte, para que dê lugar a vida de novo. Vem amores, vão paixões. Vem decepções, vão ilusões. Vem tentações, vão traições. Vem vida, vai vida. É assim.   Fôlego, vamos lá. Até mesmo porque o tal sentido que procuramos nos sites esotéricos é esse. Então todos aqueles sorrisos bobos, lágrimas ardidas, taquicardias de ânsia e raiva e as tais mariposas no estômago - ou seriam borboletas? – e a velha ressaca de viver intensamente, ainda vai ter que valer a pena. Façamos isso. Caso contrário, vamos escrever uma letra de pagode, porque assunto e inspiração não nos falta (te cuida, Raça Negra!).

Ok, mas sejamos sinceros: haja saco. Sim... saco são esses recomeços que terminam sempre! E na boa, às vezes a culpa nem é nossa por crermos nas possibilidades vindouras. Faz parte de nossa essência acreditar e valorizar tudo que é novo. Sejamos francos: se usamos uma roupa nova para uma ocasião especial, não seria diferente em usarmos esperanças novas para um novo começo de ano. Tampouco, não é nada estranho acreditarmos que uma nova paixão é uma nova chance que a vida nos dá para sermos felizes nesse quesito.

Expectativas e ilusões são entorpecentes difíceis de se dizer “não”. Acreditamos e renovamos nossas esperanças tantas vezes com uma fé tão própria de nossa condição humana, tão desprovida de quaisquer coisas negativas, que na boa, dá vontade de mandar a vida tomar no rabo por não nos dar uma aliviada! Confiamos no mesmo passo em que somos desiludidos, tanto que acho que a vida deveria nos pedir perdão de vez em quando, só para inverter a ordem das coisas.

Por isso aceitaremos a rotina de novo. Por isso vamos sorrir e suspirar para o cotidiano que vai nos arrastar impiedosamente durante todo o ano que acabou de começar, mas que por ora ainda está rançoso como uma grande segunda-feira. Paciência. Daqui a pouco já estaremos tão robotizados dentro dele, que mal perceberemos que ele tinha começado algumas horas atrás. E por que definitivamente não viramos as máquinas, numa perspectiva Matrix de ser? Porque teremos toda aquela jornada sentimental, de ilusões e desilusões, risos e choros, inícios e fins para nos distrairmos entre um domingo e outro. É isso que nos torna humanos, que nos faz acordar toda segunda-feira de manhã às 6 horas em ponto, esteja ele nublado ou não. Nós não podemos parar, para que a vida também não pare.

Então, seguindo e quebrando o praxe dos reveillons: feliz ano novo. Feliz março. Feliz segunda-feira. Que tudo se realize. Um brinde, sobretudo à vida, que não para – graças a Deus, pois daqui a pouco é dezembro de novo... 


domingo, 21 de outubro de 2012

Volta por baixo

Sr. Apêndice é encontrado mendigando pelas ruas. Mistério do desaparecimento do cruzado dos relacionamentos amorosos finalmente chega a uma dramática resolução. Desiludido, ele confessa: “já mendiguei amor, hoje me contento com meio x-salada”.  Confira tudo nesta impressionante reportagem.

O ano era 2010 e um curioso blog surgia na blogosfera. Intitulado “Crônicas do Sr. Apêndice”, o blog escrito pelo homônimo e misterioso Sr. Apêndice era um destilado ácido e agridoce das eternas indagações sobre os relacionamentos amorosos. Descrito pelo próprio autor como um lugar de “encheções de sacos amorosas”, o blog não poupava ninguém com tiradas críticas e bem humoradas das (des)ilusões amorosas, que iam desde abordagens cotidianas até questionamentos existenciais.

No entanto, desde 12 de junho de 2011 - data da última crônica postada - o blog encontra-se abandonado, sem nenhuma manifestação de seu autor, fato que suscitou a curiosidade e aflição de seus leitores. Muito se especulou sobre o sumiço do Sr. Apêndice; uns afirmavam que ele finalmente cansou da sua eterna e infecunda cruzada contra os relacionamentos amorosos, engordou e estava apostando todos os meses na Tele Sena; outros juravam que ele finalmente se apaixonou e alterou todas suas perspectivas sobre o assunto; e ainda havia alguns teóricos da conspiração que asseveravam que o ensacado personagem era uma fraude do sistema, usado por uma fábrica de chocolates à beira da falência a fim de vender bombons aos deprimidos leitores.

Porém nada disso era verdade. Após uma decepção amorosa “das brabas”, conforme suas palavras, o Sr. Apêndice literalmente surtou. Após tentar se internar várias vezes em uma clínica de reabilitação para drogados, com o intuito de se livrar do pior narcótico do mundo, a paixão não correspondida, ele foi jogado a própria sorte e saiu a vagar sem rumo pelo mundo. Durante mais de um ano, ele tem vivido em sarjetas, construções abandonadas e calçadas, entregue à piedade alheia para poder sobreviver. “Quando fui tentar me internar não fui aceito, porque, segundo os psiquiatras, paixão não era uma droga”, revela o Sr. Apêndice, um ano depois do seu desparecimento do blog. “Me disseram que meu problema era falta de ocupação, que um coração vazio se curava com uma enxada nas mãos”.

Visivelmente mais magro, sujo e abalado, o Sr. Apêndice foi encontrado esta manhã em um terreno baldio, trajando trapos, enrolado em um cobertor velho e deitado sobre pedaços de papelão. Entre seus pertences, uma garrafa vazia de vodka barata e uma cópia amarrotada de “Mulheres”, do autor americano Charles Bukowski. “O quê? Pensaram que eu lia sonetos de amor do Shakespeare?” – bradou a criatura encapuzada ao ser questionado sobre sua leitura. “Limpei meu rabo com Romeu e Julieta esses tempos” – debochou desconcertado.

Sobre sua situação atual de miséria, consequência da sua fuga do blog e do mundo, o Sr. Apêndice foi impreciso: “sabe como são às coisas; às vezes você tem um tesão pré-adolescente pelos seus feitos, outras tudo parece uma bobagem. Foi assim comigo, uma hora eu percebi que o mundo e os relacionamentos não eram tudo aquilo, que eles não iriam mudar e que tanta “encheção de saco” só servia para encher o saco mesmo! Além do mais, eu precisava arejar as ideias. Saí para comprar cigarros no boteco da condição humana e nunca mais voltei. Até porque eu não fumo mesmo.”

Segundo o Sr. Apêndice, o vácuo teve seu aspecto positivo em suas reflexões. Nessa temporada, isolado e sem-teto, ele se permitiu a reconsiderar alguns pontos de vista. “Não quer dizer que os culpados sejam os próprios relacionamentos amorosos. Eles sempre vão ser complexos e confusos, seguindo aquela eterna mística de contradições e expectativas. O que ferra mesmo é a realidade, essa representada pelas pessoas que expõem seus sentimentos umas às outras. No final das contas, talvez culpar a existência e a sorte seja o mesmo que mijar em incêndio – o complicado são as pessoas mesmo” – e indaga, “e aí, o que se faz quando tudo no mundo dos relacionamentos gira em torno de pessoas? Se apaixona por uma árvore? Convida uma poltrona para ir janta à luz de velas?” Por fim, enfatiza:“A não ser que você seja um pansexualista ou monge tibetano, você está preso no jogo. E esse jogo é muito tenso, sobrecarregado de pressões que deixa vestibular de medicina na USP igual a teste de pré-escola, e final de Brasileirão igual a futebol de fim de semana de campinho de várzea. É um mundo de histórias, dramas, desesperos, perdas, músicas pops de dor de cotovelo e filmes com a Kate Hudson que fazem da humanidade uma colcha de retalhos que só serve para te sufocar ao invés de te cobrir. É como me disse um outro mendigo esses dias, ‘tira o ser humano da Terra e tu vais ver a beleza de mundo que fica’”.

O Sr. Apêndice se negou a dar detalhes da sua última e fatídica decepção amorosa, virtualmente a causa pelo estado deplorável que se encontra. Em uma tosse carregada, ele apenas balbuciou a seguinte sentença: “vou começar a evitar certos signos”. Quanto ao futuro, ele ainda diz que é complicada uma nova perspectiva de vida, apesar de se assumir mais racional e distante de tais incômodos, mas dá um recado aos leitores, bem-humorado como é de seu estilo: “agora que me acharam, vou ter que voltar de um jeito ou de outro; até porque não aguento mais jogar canastra com esses ratos aqui no banhado. Além disso, os FDP já estão de olho na minha casa de caixa de papelão de geladeira Consul há um bom tempo”. Em sua nova fase no blog, além dos conhecidos debates sobre os relacionamentos amorosos, também haverá espaço para críticas ao cotidiano e escarradas ácidas na condição humana, às vezes em forma das tradicionais crônicas, outras por meios de contos, ensaios e até, quem sabe, por meio de alternativas multimídias, como vídeos e podcasts. O blog também contará com uma página no Facebook. Porém, mesmo com as novidades, o Sr. Apêndice sentencia: "mas não se animem muito. No final das contas acho que vai dar a mesma merda de sempre".

Questionado sobre algum desejo imediato, o Sr. Apêndice foi sintético: “quem vive sem um apêndice sabe viver sem qualquer coisa vital, mas se vocês puderem me dar uns 10 pila para eu comer um xis ali no trailer da esquina, eu agradeceria. Já mendiguei muito amor nesta vida, mas hoje em dia me contento com meio x-salada”.
  
 
Fotos: Isabella Maciel Heemann




 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Crônicas do Sr. Apêndice (Teaser do Blog)

O Sr. Apêndice está de volta. Assista ao teaser de reestreia do blog:



Mas o que teria realmente acontecido com o Sr. Apêndice? Qual seria a explicação para seu misterioso sumiço? Confira em breve (muito em breve mesmo!), aqui neste blog, por onde andou o Sr. Apêndice nos últimos tempos.

Ah, e agora o blog tem uma página no Facebook. Dê o seu "curtir" para o Sr. Apêndice.

http://www.facebook.com/cronicasdoapendice 


sábado, 11 de junho de 2011

Namoro de ocasião

Uma crônica em "homenagem" ao Dia dos Namorados


Como qualquer data comercial, o Dia dos Namorados também é um dia cretino. Aliás, talvez a mais cretina de todas as datas em que você é forçado a comprar um presente. O Dia dos Namorados ganha até do Natal e da Páscoa em termos de data mais cara de pau do calendário. Sim, pois a questão desse dia não é desejar "paz ao mundo aos homens de boa fé" e comer peru com aqueles parentes insuportáveis, muito menos se entupir de chocolate só porque Cristo ressucitou pelo enésima vez em um domingo. Não.

O Dia dos Namorados é pior. Ele é mais vil, pois além de nos incutir a obrigação moral de comprar algum presente ridículo e brega (como aquelas almofadas de coração com bracinhos com o escrito "Te amo um tantão assim"), ele dissemina um pseudo-senso de romantismo exacerbado nas criaturas ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre nossa condição de seres carentes/necessitados/solitários/abandonados/infelizes, etc.

É incrível, mas mesmo aqueles que se dizem alheios ao assunto acabam cedendo de alguma forma para a "importância" da data. O Dia dos Namorados consegue a façanha de incomodar até os solteiros convictos e os niilistas de plantão, que mesmo no alto de seu desdém romântico, ainda se importam em emitir pareceres indignados quanto ao dia 12 de junho.

No entanto, para o resto dos mortais, a data é sentida pelo peso que ela se propõe a ter. Para aqueles que namoram, o dia 12 tem o seu aspecto sacro. O ritual de comprar um presente, escrever um cartãozinho meloso, jantar um fondue e beber um vinho, e ainda ir para aquele motelzinho fazer um "papai e mamãe" faz parte do imaginário da data, e muitos colocam isso acima da própria importância da relação. Não importa se o namoro ande uma merda; dia 12 ele tem que dar rosas para ela não se sentir a pior pessoa do mundo. Dane-se se aquele casamento de 10 anos passa por uma crise abissal; na noite do Dia dos Namorados os dois vão sair para jantar em um restaurante caro e depois vão transar em nome da obrigação do rito. É eu sei, hipocrisia social mandou lembranças.

Mas como disse no início desta crônica, isso faz parte da cretinice da data, como é comum em todas as datas comerciais. Natal só é Natal porque o Papai Noel é o verdadeiro espírito capitalista e Páscoa só é Páscoa porque Jesus Cristo era chocólatra e fã do Pernalonga. Com o Dia dos Namorados é a mesma coisa. As lojas não penduram centenas de coraçõezinhos vermelhos em suas vitrines porque é o dia internacional do transplante cardíaco ou porque é dia de dizer àquela pessoa especial que você a ama. Óbvio que não. O esquema é o mesmo de sempre: compre e mostre seu amor em 6 vezes sem entrada no cartão.

Sim, pois muita culpa de nos sentirmos tocados por essa data vêm dos apelos comercias vida a fora. Você liga a TV e vê propagandas emocionantes de perfumes com casais perfeitos protagonizando cenas tenras de romance barato; abre o jornal e se depara com um ensaio sensual de lingerie com os dizeres do tipo "neste Dia dos Namorados abuse de sua sensualidade". Porra! A interpelação midiática chega a ser covarde! Por isso, mesmo que você não namore ou coisa do tipo, você acaba vivendo a data da mesma maneira.

Se você está solteiro, você é automaticamente apartado da data. Sim, pois todo mundo pode ganhar presentes no Natal, mas no Dia dos Namorados só quem namora. E todo mundo sabe como é um saco ver todo mundo abrindo presentes na sua frente e você não ganhar nada! A carência é irmã do egoísmo. Diante dessas circunstância, bate aquela revolta clássica contra a data. Surgem aquelas manifestações clichês: "eu não passo o 'Dia da Árvore' com uma árvore nem o 'Dia do Índio' com um índio, então por que eu passaria o Dia dos Namorados com um namorado?". Resposta: porque, não, porque você não teve competência para isso! Então, se vire e aguente as histórias de suas amigas no outro dia se exibindo de como foi maravilhosa a noite do dia 12 e sacudindo as quinquilharias que ela ganhou do namorado "perfeito". Mas não se encane com isso, provavelmente a ocasião não foi nada daquele filme romântico que ela narrou. É tudo uma questão de exibicionismo. (Aproveite e destile seu ódio e seu recalque nesta criatura, hahaha).

Mesmo assim, a grande maioria não entra nessa onda de revolta gratuíta. Muita gente cai na armadilha do namoro por ocasião. Ora, já que a data é cretina, vamos ser cretinos também. Dessa maneira, muitos promovem aquele rolo meia boca do fim de semana a um namoro sem ter a miníma e real vontade de namorar, só para não passar o dia 12 de junho "sozinhos". Ou então, aquela relação que está só se segurando pelos fiapos aguenta mais um pouco em nome da troca de presentes. E dá-lhe flores e bombons que vão durar mais tempo que o relacionamento.

Esta é a realidade, e infelizmente a coisa não vai muito longe disso. Mas antes que vocês pensem que eu, o Sr. Apêndice, estou mais uma vez despejando um recalque insensato em cima de uma ocasião necessariamente importante no mundo das relações, eu me defendo: é normal se sentir assim. Afinal, a culpa não é nossa, pobres mortais atirados no Coliseu do amor e entregues aos leões da realidade. É a nossa sina, e nós que vamos morrer, saudamos o imperador.

Bem, depois deste manifesto, creio que não vou parecer tão cretino em desejar a todos, namorados, solteiros, casados ou enrolados um Feliz Dia dos Namorados! Aproveitem seus ursinhos de pelúcias e suas fronhas de melhor namorado(a) do mundo, e se exibam bastante. Corram, e arranjem logo alguém para você sair para jantar neste dia 12, porque daqui há alguns dias, ninguém vai se importar mais com isso...