Esses dias, resolvi obedecer a um antigo psicanalista e cumprir a tal “Lei do Desapego”. Acho que só não fiz isso antes de raiva. Do psicanalista, claro, pois o cretino me cobrou uma fortuna por conselhos que qualquer um desses programinhas que passa de tarde nas TVs Records da vida, ou cantor sertanejo me diriam de graça. Ok, passando o momento de negação, vamos então aos “desapegos”.
Partindo do
princípio que a necessidade do desapego advém de uma prática - provavelmente
chupada do Feng Shui ou qualquer outra coisa que os orientais apregoam – que
condiz que devemos reciclar nossas energias através da eliminação de objetos
materiais que não usamos e estão estagnando um possível progresso em nossas
vidas, achei válida a tentativa. Dizem os conhecedores, que ao acumularmos
tantas coisas inúteis, ficamos amarrados energeticamente a elas, dependentes de
sentimentos passados que não nos fazem mais bem. Ou seja, guardar aquele papel
de bala que o fulaninho te deu, só porque “foi a primeira bala que fulaninho te
deu”, além de denotar que você tem algum instinto de rato ou guaxinim, significa
que você não quer largar a energia que te ligava ao fulaninho, sendo que nem
ele ou a marca da bala existem mais em sua vida.
Eu realmente não
tenho moral para falar dos ratos ou guaxinins, animais que naturalmente acumulam
tudo quanto é porcaria em seus ninhos. Sou um “apegado” profissional. Guardo
tantas tralhas em minha vida e aposentos que fariam um bazar turco passar vergonha. Todos registros materiais de minhas decepções amorosas e frustrações
estão por aí, espalhados por gavetas e
caixas de fundo de armário. Sou uma tragédia pessoal numa montanha de
quinquilharias.
Disposto a dar um fim nisso, liguei para a Leidydai. Leidydai é uma moça que trabalha como diarista e faxineira, e de vez em quando me salva da situação do meu apartamento, de tão sujo e desorganizado, se tornar um organismo vivo simbiótico e me devorar. Como acabou o carnaval, imaginei que a Leidydai – que segundo ela, recebeu esse nome da mãe em homenagem àquela princesa de Mônaco (!) – estivesse precisando de uma grana extra para pagar suas eternas dívidas em paetês e fantasias que ela contrai todo fevereiro. Ah sim, Leidydai é passista de pelo menos trinta Escolas de Samba que existem por aí, e diz que só fará faxinas até virar a próxima Globeleza ou rainha da bateria do Salgueiro ou da Mangueira - sei lá, uma dessas.
A missão da Leidydai dessa vez era mesmo digna de enredo de Escola de Samba: me
ajudar a dar fim nas minhas quinquilharias passadas, dignas de centenas de
histórias que não deveriam fazer mais sentido na minha vida. E a cada gaveta aberta, a cada caixa
revelada, a cada armário desbravado, lembranças voavam agitadas pelo meu
apartamento como morcegos desnorteados. Mas
na realidade, confrontar seu passado e estar disposto a jogá-lo fora, te dá uma
sensação única de poder. Talvez a história não ganhe uma nova ordem ou um final
melhor, mas certamente, você enfim sente-se livre. Livre de mágoas tolas e
arrependimentos desnecessários. Livre de algo que já se foi. Livre até mesmo de
um pedaço de você mesmo.
De bilhetes, cartas e fotos, até detalhes mais prosaicos de uma relação, como tickets de cinema e os absurdos papéis de bala, tudo estava lá, lembrando-me de pessoas, dias e horas com essas pessoas, alegrias e tristezas com essas pessoas. Anos e anos em vão, entupindo minhas gavetas. E eu, ironicamente, reclamava de espaço para guardar minhas cuecas e meias.
- O que o senhor vai fazer como esses aqui? – perguntou-me Leidydai, assim que encontrou um saco plástico cheio de ursos de pelúcia, após tossir poeira e ácaros.
De bilhetes, cartas e fotos, até detalhes mais prosaicos de uma relação, como tickets de cinema e os absurdos papéis de bala, tudo estava lá, lembrando-me de pessoas, dias e horas com essas pessoas, alegrias e tristezas com essas pessoas. Anos e anos em vão, entupindo minhas gavetas. E eu, ironicamente, reclamava de espaço para guardar minhas cuecas e meias.
- O que o senhor vai fazer como esses aqui? – perguntou-me Leidydai, assim que encontrou um saco plástico cheio de ursos de pelúcia, após tossir poeira e ácaros.
Ursinhos de
pelúcia! Cacete, existem mulheres que presenteiam seus namorados com ursinhos
de pelúcia! Ok, sem discussões de gênero aqui, mas não existe maneira
mais bizarra de infantilizar o homem da relação do que dar-lhe um urso, coelho,
tatu-bola, lagarto, ornitorrinco, e sei lá que outra espécie da fauna, de
pelúcia. Quem sabe uma mamadeira e uma chupeta da próxima vez? Eu tive uma
namorada que, se o IBAMA controlasse animais de brinquedo, ela estaria presa há
séculos. Realmente, é impossível um relacionamento ir à diante, pressupondo que
esses exigem maturidade, enquanto o casal ficar trocando criaturinhas fofas de
pelúcia! Qual seria a ideia por trás disso? Arrastar a infância para dentro da alcova do
casal? Não, não, perturbador.
-
Leidydai, jogue esse zoológico de pelúcia fora – ordenei.
-
Sr. Apêndice, posso ficar com eles e dar aos meus filhos? – questionou-me a
faxineira.
-
Você têm filhos, Leidydai?
-
Ainda não, mas um dia eu vou ter. – respondeu-me Leidydai, convicta de uma
lógica um tanto própria.
Dei
de ombros e assenti que sim, desde que aqueles bichos ficassem longe de mim.
A sessão de cartas
e bilhetes foi outra decadência existencial que sucumbiu sobre mim. É que eu
sou de uma geração pré-Facebook, Whatsapp e sei lá mais quais apps que estão na
moda. Eu era de uma época em que as pessoas utilizavam papel e caneta para
registrar a escrita. Os namoros eram assim também, sentimentos verbais eram
marcados com traços de esferográficas sobre calhamaços de celulose.
Quando eu era
criança, ganhar um bilhetinho da colega de aula dizendo que “você era bonito" e
que "ela gostava de você”, valia tanto quanto uma medalha de guerra. Ainda mais
porque eu nunca ganhei um desses. Mas acho que por casos como esses, se
perpetuou um ritual nos relacionamentos de enviar palavras escritas, pois
talvez a validade material tivesse mil vezes mais poder que a validade
sentimental, etérea e intangível. Você não pode segurar um “eu te amo”, mas
pode ir ao bilhete de folha de caderno arrancada que diz o mesmo, quantas vezes
você quiser. O problema, que ao final inevitável das relações, fica toda uma Biblioteca de Alexandria perdida na sua
vida, esperando um arqueólogo corajoso a desbravá-la. Chega a ser é cômico:
quantas vezes você não abre “aquela” caixa, cheia de lembranças de um
relacionamento passado, só porque tem medo do que possa sentir? Muitos até
colocam um aviso de “não abra” sobre a caixa, evitando o confronto com aquela
Pandora sentimental. Por isso, ponto para a teoria do desapego: jogue tudo
fora, queime e não se incomode mais com o monstro de dentro do armário, ou de
baixo da cama, ou sei lá mais onde você guarda essas relíquias do
relacionamento morto.
Com as fotos o caminho foi quase o mesmo. Repito o discurso de matusalém, mas eu sou de uma época ancestral ao Instagram, de uma era em que as pessoas tiravam fotos, levavam seus rolinhos de 12 a 36 poses para revelar, e depois as resgatavam, impressas em papel filme. E como momentos cristalizados, congeladas em um tempo-espaço em que parecemos felizes para sempre, lá elas estavam, fotos e mais fotos de namoradas antigas que agora moravam escondidas em minhas gavetas. Em era do .jpg, as milhares de fotos que tiramos ficam vagando em redes sociais ou perdidas em alguma pasta do HD de um computador. O acesso não é mais o mesmo. As provocações do destino não são mais tão ferozes. E além do mais, o botão delete está ali, sempre de prontidão. E se ele ainda não for eficaz, nada como um bom vírus para destruir sua Placa Mãe e enviar seu PC para o lixo, junto com as memórias digitalizadas.
Com as fotos o caminho foi quase o mesmo. Repito o discurso de matusalém, mas eu sou de uma época ancestral ao Instagram, de uma era em que as pessoas tiravam fotos, levavam seus rolinhos de 12 a 36 poses para revelar, e depois as resgatavam, impressas em papel filme. E como momentos cristalizados, congeladas em um tempo-espaço em que parecemos felizes para sempre, lá elas estavam, fotos e mais fotos de namoradas antigas que agora moravam escondidas em minhas gavetas. Em era do .jpg, as milhares de fotos que tiramos ficam vagando em redes sociais ou perdidas em alguma pasta do HD de um computador. O acesso não é mais o mesmo. As provocações do destino não são mais tão ferozes. E além do mais, o botão delete está ali, sempre de prontidão. E se ele ainda não for eficaz, nada como um bom vírus para destruir sua Placa Mãe e enviar seu PC para o lixo, junto com as memórias digitalizadas.
O engraçado é que
eu pensei que rever as fotos antigas seria algo mais doloroso. Na verdade, ao me rever em minhas fotos do passado, acabei mudando minha ótica sobre quem eu era naquela época. Ao
ver minha cara de moleque ridículo há mais de uma década, tive que assumir:
“agora eu sei porque ela me chifrou”. Ter um olhar despido de paixão ou raiva
me deu a lucidez de que essas antigas namoradas nunca foram tudo isso que eu
imaginava até os dias de hoje – até mesmo porque muitas já estão gordas ou
velhas. Ah, o tempo - ele pode ser bem reconfortante, ainda mais quando ele
passa. De posse a inúmeras fotografias, a ordem foi apenas uma a Leidydai:
- Queime-as.
Leidydai sorriu para mim com uma cara de cumplicidade
e disse:
- Ahhhh, eu sabia que o senhor ia na mesma
Mãe-de-Santo que eu...
O desapego seguiu, num gosto acre-doce de despedidas. Foram alguns CDs, alguns
livros, roupas, lembranças tolas e os mais
variados eteceteras. No final da jornada, para minha surpresa, tanta tralha não se resumia em um mundo sentimental que eu achei que havia construído. Acho que é
porque, no processo de confrontação com o passado, eu percebi o quanto tais
energias eram realmente desnecessárias. Ficou claro, que as lembranças não
digeridas pela alma ganham proporções maiores do que elas realmente são. Livrei-me
mais do que quinquilharias – fui liberto de amarras existenciais insensatas e, até mesmo, ridículas. Eu não precisava de coragem para mexer naquelas velhas
caixas e gavetas - precisava mesmo era de vergonha na cara.
Fiquei um tempo olhando para o novo nada que se apoderou das minhas gavetas e armários, pensando por um breve momento se minhas ex-namoradas tinham se livrado de tudo que dei a elas, mas fui – graças aos céus – interrompido de meu estado introspectivo por uma exclamação de Leidydai:
Fiquei um tempo olhando para o novo nada que se apoderou das minhas gavetas e armários, pensando por um breve momento se minhas ex-namoradas tinham se livrado de tudo que dei a elas, mas fui – graças aos céus – interrompido de meu estado introspectivo por uma exclamação de Leidydai:
- Sr. Apêndice, encontrei uma caixa
aqui com umas pedrinhas brilhantes!
Pedrinhas
brilhantes? Será que Leidydai achou improváveis pedras preciosas de um parente
pirata que eu nunca tive? Fui conferir, e então, meu coração encheu-se de
nostalgia quase me levando as lágrimas: eram meus Geloucos da Coca-Cola! Deus
do céu! Quantos litros de refrigerante eu tomei para completar a coleção? Não
sei como não morri de tanto sódio e açúcar! Há anos estavam esquecidos no fundo
de meu armário, e o pior, do limiar da minha memória. Fiquei num transe
infantil, até ser novamente interrompido por Leidydai:
- Sr. Apêndice, e aí, jogo eles fora
junto com o resto de coisas do desapego?
- Não, Leidydai, guarde meus Geloucos de volta!
Afinal, tudo tem um
limite. Até os desapegos.